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Regenera Rio Doce e a alquimia da esperança na maior tragédia ambiental do Brasil

Matéria publicada em 29 de maio de 2025.

Dez anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), que provocou um tsunami de lama que matou vidas, soterrou comunidades, intoxicou o Rio Doce e atingiu o mar no Espírito Santo, uma pergunta ecoa: que aprendizados podemos tirar desta tragédia para buscar sua regeneração? Em entrevista ao Núcleo de Comunicação Cigarras, Hauley Valim, liderança no movimento Regenera Rio Doce, revela como a alquimia entre saberes tradicionais e inovação jurídica está criando um novo paradigma de recuperação — onde o rio e a natureza são vistos como seres vivos com direitos. Da intoxicação por metais pesados à pioneira “Lei da Onda”, a jornada é de resistência, ciência ancestral e esperança geológica.

Do luto à aliança: o nascimento do Coletivo

O projeto nasceu do choque. Quando a lama de rejeitos atingiu o mar em Regência (ES), comunidades tradicionais e ativistas de todo o país se uniram em expedições para avaliar os danos ao longo do Rio Doce e finalizavam na Foz. O rompimento da barragem foi, antes de tudo, um dano à água, mas houve uma mobilização muito grande de permaculturores,  agroecologistas e artistas de todo tipo. “Foi aquele momento que eles precisaram fazer o descarrego de tudo aquilo que eles perceberam. Toda a tristeza, toda a angústia, também toda a esperança, toda a força do povo. Quando eles chegaram aqui, foi esse momento de síntese. E aí nós tivemos a oportunidade de acolher esses coletivos”, descreve Hauley. O Coletivo Aliança Rio Doce surgiu desse abraço entre o desespero e a solidariedade, transformando a foz do rio em um laboratório de regeneração.

O envolvimento da comunidade e de coletivos é a base do trabalho de Hauley

A Ciência do impossível: reparar o irreparável

“O dano é irreparável em função da limitação existencial que a raça humana está condicionada, (…) não tem como voltar atrás”, afirma o alquimista. “Agora, se a gente amplia a dimensão da vida e olha para o Rio Doce enquanto um ser, assim como os humanos, se a gente olha para o oceano igual a um ser, assim como os humanos, se a gente olha para a natureza de forma simétrica à raça humana, de forma igualitária, inclusiva, aí a gente consegue começar a pensar uma regeneração integral”. Para ele, a resposta está na sabedoria do próprio Rio Doce — que carrega em suas águas a sabedoria físico, química, mineral e biológica para se curar. O segredo? Ouvir os povos tradicionais e os “filósofos da natureza”, que entendem os ciclos geológicos. “O tempo é o senhor de todos os momentos”, reflete.

Metais pesados e a medicina ancestral

Com níveis de contaminação ainda crescentes, o projeto enfrenta um desafio urgente: a exposição aguda e crônica das comunidades aos metais pesados, assim como em Brumadinho. “O meu corpo, eu vou fazer 50 anos, tem dez anos de exposição. As crianças que nasceram dez anos atrás, quando tiverem 50, elas terão 50 anos de exposição. É preciso ampliar nossa preocupação em relação à saúde”, alerta Hauley. Ele conta que menos de 50% do rejeito chegou ao mar e que a contaminação só vai estabilizar quando todo o rejeito descer. Hauley afirma que a população precisa de outras análises e outras pesquisas para entender os níveis de acumulação de metais pesados no corpo humano. “A gente pode chegar à conclusão por derivação em função das pesquisas que estão sendo feitas no rio e no mar, a partir da contaminação das plantas, dos peixes, dos animais, para tudo isso tem dado. A consequência lógica e biológica desse processo, já que a espécie humana é topo de cadeia, é entender que a espécie humana está no topo, também, da escala de contaminação”, lamenta.

A medicina convencional no Brasil não reconhece que é possível retirar metais pesados do corpo, só é possível tratar alguns sintomas. Mas a resposta pode estar em povos mais antigos, que possuem soluções sólidas na medicina ayurvédica indiana e na medicina tradicional chinesa, e usam homeopatia e princípios alquímicos para “ensinar” o corpo a eliminar metais. “O nosso corpo pode aprender como se comportar em relação à presença desses seres que estão acumulando em nós, que são os metais pesados”, explica.

“A medicina chinesa e a medicina indiana não rompeu com a espiritualidade esse processo de sabedoria, ele acontece também por vias não racionais, através do diálogo. A homeopatia cuida do problema a partir do igual, a partir das causas da similaridade. Então, você vai colocar uma informação a partir do diálogo, porque o trabalho farmacêutico é um trabalho de diálogo. (…) É o princípio elementar da comunicação entre os seres, só que a gente trata o mineral como recurso, a gente trata o rio como recurso e não os trata como seres, como iguais, então não acontece a comunicação. Perdemos a capacidade de nos comunicar com esses seres, por isso que eles são nocivos, porque os tratamos como objeto, a gente sujeita a natureza à nossa própria vontade”.

Hauley Valim – Regenera Rio Doce

A onda que virou lei (e jurisprudência global)

Em 2024, Regência fez história: a “Lei da Onda” tornou-se a primeira no mundo a reconhecer direitos próprios a uma onda — não como recurso turístico, mas como entidade viva. “A preocupação da lei da onda não é o ser humano. Então, não é o direito do surfista à onda. É o direito da onda, é o reconhecimento da onda. É reconhecer que ela tem o direito de continuar quebrando na Foz do Rio Doce, como ela sempre quebrou de forma ancestral”. A legislação aprovada atraiu ONGs e acadêmicos internacionais e inspirou a luta pelo reconhecimento como Reserva Nacional de Surf, modelo de governança ambiental.

A onda de Regência é famosa por estar entre os grandes símbolos de ondas perfeitas no planeta e o responsável por isso é o Rio Doce, com seu movimento das águas e sua inteligência físico-química que deposita a areia no mar de forma que a onda seja longa e tubular.

“Ela ficou sete anos sem quebrar longa e perfeita como a gente estava acostumado. Só que nos últimos dois anos, a gente tem visto o comportamento da onda mudando e ela está retornando aos poucos à sua qualidade. Pra nós, surfistas, é muito mais danoso parar de surfar, porque o surf é onde a gente consegue se regenerar, é nosso espaço sagrado. Eu e o Luiz Hadad (Rede Muda) temos uma discussão sobre o potencial terapêutico da onda de Regência, que é um potencial terapêutico de qualquer onda. Essa capacidade da onda transformar a nossa composição, nossa composição afetiva”, conta Hauley.

“Eu acredito no potencial terapêutico das ondas de regência e quem surfa sabe que o máximo de conexão que já conseguimos experimentar nessa encarnação é a sensação do tubo. O tubo é quando amos por dentro da onda, que é como se a gente estivesse revisitando o útero da mãe natureza. É como se a gente estivesse sendo beijado por Deus. E, especialmente nas ondas de Regência, quando a gente pega um tubo e sai no que chamamos de baforada (quando a onda, além de deixar você sair, ela cospe um vapor d’água).
 Eu e o Hauley chegamos ao consenso que equivale a uma sessão de descarrego. Porque, muitas vezes, estamos com diversos problemas fora d’água, entramos na água e, se pegamos uma onda boa e um bom tubo, temos uma alquimia de sensações que nos deixa feliz.
 Ficamos com um sorriso, ficamos deslumbrados com aquele momento. Então, acreditamos também nesse potencial da tuboterapia. E, não à toa, os surfistas foram e são os principais atores que estiveram em Regência depois da lama e que continuam frequentando, que estão ajudando a liderar esse movimento.
 Porque os surfistas são tão apaixonados por essa sensação do tubo que eles estão dispostos a arriscar a própria vida surfando no mar, que foi contaminado com metais pesados. Mas é uma sensação tão boa, tão confortante e que traz tanto bem-estar que nos arriscamos para poder viver isso mais uma vez. Então, vida longa a Regência, que a Reserva seja um marco e parabéns ao Hauley por esse trabalho incrível.”

luiz hadad – rede muda outras economias e cambiatus

O legado: da lama ao futuro

De 2018 até 2022, foram feitos diálogos internos no coletivo Regenera Rio Doce e na Associação de Surf de Regência. O Regenera Rio Doce saiu do Fórum internacional dos direitos da natureza muito inspirado com a proposta e a Associação de Surf de Regência topou encarar a missão. “Com apoio do Vereador Professor Antônio e a Associação de Surf de Linhares conseguimos a mobilização necessária para encaminhar a demanda para o legislativo. Nós amos praticamente dois anos discutindo, consolidamos a lei, a lei foi e voltou na plenária várias vezes. Fomos insistindo e conseguimos a aprovação em 2024”, comemora Hauley.

Essa jurisprudência atraiu o interesse da comunidade acadêmica ligada aos Direitos da Natureza, à educação ambiental e à conservação, principalmente da Europa e EUA. Hauley conta que “tem recebido pesquisadores, pesquisadoras e jornalistas internacionais que estão muito interessados não só nesses saberes, mas também nessa tecnologia social que a gente desenvolveu. E aí eu acho que trazemos a Saúva enquanto uma ferramenta de encontro, de mobilização.”

“Na verdade, a minha militância tem a ver também com esse apadrinhamento com o Luiz Haddad, esse apoio que eu recebo dele como incentivador, também a Muda como apoiadora dos projetos. E a Mapas, que é a ONG fundada por Vanessa Hasson. Só assim a gente conseguiu avançar com a demanda e com esse grande coletivo. Esse ano a gente conseguiu avançar mais em função também da minha Bolsa Ativista da Saúva, porque eu já não tinha carga horária para poder tocar esses projetos, por conta da necessidade de sobrevivência”.

Hauley Valim – Regenera Rio Doce
O famoso tubo das ondas de Regência

Para Hauley, nesta lei está uma chave importante para a conservação dos ecossistemas marinhos, tendo o surf como protagonista da conservação. E o maior ensinamento é simples: o rio já está se regenerando e nosso papel é acelerar esse processo enxergando-o como um aliado e não como recurso. O projeto, que mistura alquimia, ativismo e inovação jurídica, prova que mesmo na maior tragédia ambiental do Brasil, a esperança — como as ondas de Regência — sempre volta.

Saiba mais: O portfólio completo do Regenera Rio Doce está disponível no PDF abaixo:

Em julho/2024, oficinas gratuitas definirão os próximos os para criar a governança da Reserva Nacional de Surf e comemorar os 50 anos de Hauley Valim.

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